Temos todo o tempo do mundo

Quando a gente para, o tempo é uma questão de perspectiva.

Assim que a quarentena começou, vivi um milagre. Há meses sofria de insônia, revirando na cama até o dia clarear. Desenhava projetos e elaborava ideias, muitas delas apagadas pelo Sol. A ordem de ficar em casa desligou minha mente e dormi por dias como uma criança. Render-me à noite foi um processo terapêutico, que me permitiu acessar sonhos inconscientes, somente possíveis, por natureza, mediante o sono. 

Mas a nova situação durou pouco. Com quinze dias, a insônia voltou. E, numa das noites em claro, resolvi investigar porque isso aconteceu. Comecei me perguntando se tinha comido açúcar demais ou visto TV antes de me deitar. Mas algo me dizia que a direção da pesquisa estava errada. O furacão no meu peito tinha outra origem.

Quando o mundo parou, parei junto. Voltei-me para as coisas simples da casa, observando meus movimentos, como há muito não fazia. A roupa e as louças pra lavar, a busca por alimentos orgânicos, o herbário cada dia mais bonito. Tudo parecia renascer dentro de um tempo que eu não controlava. Nas conversas virtuais, vi clientes com filhos no colo ou lidando com questões domésticas, como o cardápio do almoço ou o som alto do vizinho. Adormeci. 

Mas somos insaciáveis. A internet se encheu de lives. Todos os amigos queriam falar uns com os outros ao mesmo tempo. Rapidamente as empresas investiram nos canais de compras on line. Mensagens em profusão passaram a nos oferecer serviços e formas de encontrar o que fazer, estando em casa. A roda do consumo e a busca da excelência retomaram seu espaço no confinamento das casas, inclusive a minha. A urgência voltou e meu sono se foi. 

Era como se apenas o cenário fosse diferente. Na prática, a vida seguia igual. Vi pessoas dizendo que, em casa, trabalhavam mais. Ouvi gente que estava feliz e gente beirando o desespero. Lembro-me de um amigo que perguntou: Como você consegue? Ele se referia ao fato de que eu, anos atrás, montei meu home office e passei a trabalhar a maior parte do tempo em casa. Como você consegue, repetia ele, dar conta de conciliar tudo isso? Estou enlouquecendo

A insônia se explicou numa noite em que refletia sobre comprar ou não uma geladeira nova. Foi um clique. O confinamento, que veio sem aviso prévio, nos jogou no peito a grande surpresa. Para ter a ilusão de que controlamos o tempo e nosso destino, preenchemos a vida com atividades, necessidades e vontades. A origem da minha ansiedade está na forma como nossa sociedade se organizou para que não percamos tempo. Sem perceber, enchi minha agenda com itens que me davam a sensação de estar no controle. 

Na canção Tempo perdido, de Renato Russo, os versos dizem: “temos nosso próprio tempo/não tenho medo do escuro/mas deixe as luzes acesas agora”. No meu caso, não dormir é resultado de não admitir que a vida segue sem controle, hoje estou aqui e amanhã não sei. Acender a luz pode ser a maneira de negar o escuro, entendida metaforicamente como a necessidade de certeza para não pensar na morte ou no fim do tempo. Mas é exatamente a fluência que garante o encanto, é a entrega que sustenta o momento. É o que me faz ouvir com mais atenção os primeiros versos de Russo: “Todos os dias, quando acordo/Não tenho mais o tempo que passou/Mas tenho muito tempo/ Temos todo o tempo do mundo”. 

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